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A VIOLÊNCIA NO CAMPO

Tomamos a conflitualidade da questão agrária brasileira (FERNANDES, 2005a) como referência neste trabalho (ver capítulo sobre a "questão agrária"). A conflitualidade é formada pelo conjunto de conflitos que, ao serem resolvidos, levam ao desenvolvimento. Desta forma, o conflito é inerente ao desenvolvimento. No interior da questão agrária, o conflito é resultado do enfrentamento entre o território do campesinato e do latifúndio e agronegócio. O conflito surge da diferença de interesses entre esses territórios e a sua solução vem da mediação do que esses dois territórios consideram problemas. É através desta mediação que ocorre o desenvolvimento. Por apresentarem interesses e estratégias divergentes, a resolução dos conflitos entre esses dois territórios nunca é total e requer constante intervenção do Estado. Como analisamos em Girardi e Fernandes (2008), o conflito não é sinônimo de violência. Conflito é uma ação criadora para a transformação da sociedade e a violência é uma reação ao conflito, caracterizada pela destruição física ou moral; é a desarticulação do conflito por meio do controle social. A violência tenta por fim ao conflito sem que haja resolução dos problemas e por isso barra o desenvolvimento. Ocupações de terra, acampamentos, defesa de interesses junto ao parlamento e ao governo são formas de conflito. Assassinatos, ameaças de morte, expulsões da terra, despejos da terra e trabalho escravo são formas de violência.

A violência pode ser direta ou indireta, ativa ou passiva. A violência direta é a violência física empregada contra a pessoa, contra a ocupação e contra a posse camponesa. Ela pode ser deflagrada por particulares ou pelo Estado e constitui principalmente em assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, despejos da terra, expulsões da terra e outras formas que causem danos físicos ou psicológicos aos trabalhadores rurais e camponeses ou a seus bens. As tentativas de assassinato, ameaças de morte e expulsões da terra são formas de violência privada contra os camponeses. Na violência direta e ativa o Estado age principalmente com os despejos judiciais e com o uso da força policial no cumprimento de ordens de despejo e na dissipação de manifestações, o que tem como conseqüência mortes e ferimentos. A forma passiva da violência direta ocorre com a omissão do Estado em relação à violência direta praticada por particulares contra os camponeses. A violência indireta é uma prática simultânea do Estado, fazendeiros e empresários. A ação política é a principal forma de execução dessa violência. Promovendo lobbies e fazendo parte dos poderes executivo, judiciário e principalmente no legislativo, fazendeiros e empresários influenciam as decisões que envolvem temas relativos à questão agrária (VIGNA, 2001). A criminalização da luta pela terra é outro exemplo de violência indireta contra os camponeses, e que pode gerar formas de violência direta no seu cumprimento. Essas ações contribuem para impedir o acesso à terra por meio da reforma agrária.

Analisamos nesta seção as principais formas de violência direta contra camponeses e trabalhadores rurais. Esta violência ocorre paralelamente à agricultura altamente produtiva que caracteriza o agronegócio e por isso configura o que Oliveira (2004) chama de barbárie da modernidade. A Comissão Pastoral da Terra documenta desde a década de 1980 as ocorrências de conflitos e violências no campo brasileiro, cujos dados são publicados desde 1984 no “Caderno conflitos no campo”. Paralelamente aos dados, a pastoral ligada à igreja católica também publica manifestos e relatos de diversos casos de violência contra a pessoa, posse e propriedade de camponeses e trabalhadores rurais. Os relatos e fotos que retratam a barbárie no campo brasileiro mostram uma população pobre, submetida a toda sorte de privação e exploração provocada pela ambição humana frente ausência do Estado. Neste sentido, as publicações da CPT permitem o contato mais sensível com esta realidade e nos faz compreender melhor os dados. Mais do que números, os dados da CPT são informações sobre a situação dos homens e mulheres do campo e retratam a luta dos camponeses brasileiros e as violências por eles sofridas. Certamente esses dados não abrangem a totalidade, mas compreendem parte significativa da realidade, cuja totalidade é ainda mais violenta e desigual. Mais do que algarismos, os números devem ser compreendidos como vidas. Mais do que pontos, linhas e áreas, os mapas devem ser lidos como representação da luta pela terra e da violência sofrida pelos camponeses e trabalhadores no campo; eles representam famílias que ficam sem casa, sem comida e sem água. O que fazemos é codificar alguns elementos da violenta realidade do campo brasileiro para tornar possível sua apreensão de diversas maneiras; é tornar possível a mensuração e dimensionamento da violência sofrida pelos camponeses com a finalidade de estudá-la e assim contribuir para que esta realidade seja alterada.

Os dados da CPT de 2006 mostram que naquele ano, nos 1.657 conflitos(34) com violência contra no campo, 783.801 camponeses e trabalhadores rurais sofreram algum tipo de violência. Dentre esses brasileiros 39 foram assassinados, 72 foram vítimas de tentativa de assassinato, 57 mortos em conseqüência do conflito, 207 ameaçados de morte, 30 torturados, 917 presos e 749 foram agredidos e/ou feridos. Tomamos para análise mais específica os dados de assassinato, ameaças de morte e tentativa de assassinato. Nos vinte anos que compreendme o período analisado (1986-2006), os camponeses e trabalhadores rurais assassinados foram cerca de 1.100, as ameaças de morte foram cerca de 3.200 e as tentativas de assassinato pouco mais do que 1.000.

O gráfico 9.1 mostra que os três tipos de violência direta contra a pessoa analisados apresentaram diminuição principalmente a partir de 1996, segundo ano do primeiro mandato de FHC, e retomaram o crescimento a partir de 2001, ano da publicação da MP 2109-52, que criminaliza a luta pela terra. Como já foi demonstrado, a estratégia com a medida provisória foi diminuir as ocupações de terra e, por conseguinte, a pressão para a criação de novos assentamentos, o que de fato ocorreu. A medida provisória conseguiu diminuir o número de ocupações de terra, desarticulando o conflito, porém sua publicação, como mostra o gráfico 9.1, iniciou um processo de crescimento da violência direta contra os camponeses e trabalhadores rurais. Este crescimento foi acelerado com o governo Lula pela retomada das ocupações de terra e por que o governo, com a criação de assentamentos não reformadores, manteve a tendência reduzida de assentamento de famílias verificada logo após a publicação da MP 2109-52.

Como representam os mapas da prancha 9.1, a violência no campo brasileiro coincide com regiões onde os movimentos socioterritoriais são mais atuantes (ocupações de terra). O leste do Pará e o norte do Maranhão configuram uma região de concentração da violência. Esta região é caracterizada pela grande população assentada e, por fazer parte da fronteira agropecuária, o latifúndio aí também apresenta intenso processo de territorialização. Desta forma, o enfrentamento é mais evidente nesta região e, com a ausência do Estado, os camponeses e trabalhadores rurais são submetidos a toda sorte de violência e exploração por parte de fazendeiros, grandes posseiros e grileiros.

 

GRÁFICO 9.1 – Assassinatos, ameaças de morte e tentativas de assassinato de 
camponeses e trabalhadores rurais – 1986-2006

 

 

PRANCHA 9.1

 

 

Além de sofrerem violência direta contra a pessoa, os camponeses também sofrem violência direta contra as ocupações de terra, contra suas posses e seus bens. Nesse conjunto de violências, em 2006 a CPT registrou 1.212 ocorrências que totalizaram 1.809 famílias expulsas da terra, 19.449 despejadas da terra, 12.394 ameaçadas de expulsão, 16.389 ameaçadas de despejo, 5.222 casas destruídas, 2.363 roças destruídas e 4.165 bens destruídos. Tomamos para a análise os despejos judiciais, praticados pelo Estado, e as expulsões da terra, praticada por particulares. Essas violências contra a ocupação e a posse estão intimamente ligadas à prática da violência contra a pessoa, pois, no ato de despejo ou de expulsão, as forças militares ou os jagunços empregam força. Os despejos e expulsões são ações que barram a solução do problema agrário brasileiro, pois não resolvem o conflito. O gráfico 9.2 e os mapas da prancha 9.2 mostram a associação territorial e temporal entre esses fenômenos. O primeiro mandato de Lula foi marcado pelo crescimento significativo das famílias despejadas.

 

GRÁFICO 9.2 – Despejos e expulsões da terra – 1986-2006

 

 

PRANCHA 9.2

 

 

A CPT também documenta formas de violência que desrespeitam ou superexploram o trabalhalho dos camponeses e trabalhadores rurais. Em 2006 foram registrados casos com 7.078 vítimas de superexploração do trabalho e 932 vítimas de desrespeito trabalhista. No extremo dessas formas de violência está o trabalho escravo. Esta forma contemporânea de escravidão é mais uma das contradições e desigualdades do desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e exemplo de como este sistema utiliza relações de produção não capitalistas para se desenvolver. O trabalho escravo, utilizado no desflorestamento na fronteira agropecuária e na produção de carvão para abastecer siderúrgicas, possibilita a construção da colheitadeira moderna e a abertura de áreas em que possa ela operar; áreas em que a produção capitalista possa se estabelecer ou se ampliar. Como afirma Martins (1999), “no caso brasileiro atual, a escravidão, que é a escravidão temporária e circunstancial, ainda que persista, está diretamente ligada ao modo como se dá entre nós o desenvolvimento do capitalismo”. (p.159). Segundo Vilela e Cunha (1999) “os dados disponíveis apontam, nos últimos 25 anos, para empresas modernas envolvidas nos casos de escravidão, revelando [...] uma cumplicidade entre o arcaico e o moderno”. (p.36).
Diversos são os nomes dados ao trabalho escravo que ocorre no Brasil contemporâneo. Segundo Figueira (2004) também são usados termos como trabalho “humilhado” e “cativo”. Também são diversas as adjetivações dadas a esta forma de escravidão, tais como “semi”, “branca”, “contemporânea”, “análoga”, “trabalho forçado”. Para evitar tais adjetivações é necessário que analisemos o conceito de escravidão. Para a Anti-Slavery International (ASI)

 

Algumas características distinguem a escravidão de outras formas de violação dos direitos humanos. Um escravo é:
• forçado a trabalhar – através de opressão física ou psicológica;
• possuído ou controlado por um “empregador”, geralmente através de abuso mental ou psicológico ou ameaças de abuso;
• desumanizado, tratado como um objeto ou comprado e vendido como uma “propriedade”;
• fisicamente coagido ou possui restrições no direito de ir e vir. (ASI, 2005, não pag.).

 

Vilela oferece elementos para que possamos excluir as adjetivações do trabalho escravo existente no Brasil atual:

 

A escravidão propriamente dita começa no momento em que a mão-de-obra disponível é obrigada a trabalhar para aqueles que se consideram senhores. A escravidão passa a ser então a forma por excelência do trabalho (forçado e não-remunerado) que só beneficia aquele que o explora. (VILELA, 1997, p.100 apud FIGUEIRA, 1999, p.166).
A existência de escravos não é suficiente para classificar uma sociedade como escravista. Ela se torna escravista quando a escravidão é sua força propulsora; a exploração do trabalho alheio, em larga escala, é permanente, consolida um sistema e o legitima por leis etc. (VILELA, 1997, p.101 apud FIGUEIRA, 1999, p.166).

 

O que caracteriza o trabalho escravo não é o sistema econômico vigente, mas sim a relação entre o trabalhador e o explorador. Para ser considerado escravo pouco importa a legitimação do trabalho escravo através de leis; o que realmente importa é a existência de um explorado e um explorador e que somente o explorador tenha vantagens nesta relação. No caso do Brasil, a adjetivação da escravidão como “escravidão por dívida” é amplamente usada. Essa adjetivação faz menção à principal forma de coação dos exploradores sobre os trabalhadores escravizados, que é a suposta dívida, impagável e crescente do trabalhador para com o seu explorador. Segundo a Anti-Slavery International (ASI, 1999) a escravidão por dívida é caracterizada como

 

o estado ou condição resultante do fato de que um devedor tenha se comprometido a fornecer em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada, nem sua natureza definida. (p.50).

 

A CPT utiliza como critério principal para a caracterização do trabalho escravo atual “a sujeição do trabalhador. Esta sujeição pode ser física como psicológica. Meios de atingir a sujeição: a dívida crescente e impagável”. (1995, p.46). “[...] elementos que caracterizem o cerceamento da liberdade, seja através de mecanismos de endividamento, seja pelo uso da força (proprietários ou funcionários armados, ocorrência de assassinatos, espancamentos e práticas de intimidação) [...].” (2003, p.138). Segundo o escritório da Organização Internacional do Trabalho no Brasil

 

A característica mais visível do trabalho escravo é a falta de liberdade. As quatro formas mais comuns de cercear essa liberdade são: servidão por dívida, retenção de documentos, dificuldade de acesso ao local e presença de guardas armados. Essas características são freqüentemente acompanhas de condições subumanas de vida e de trabalho e de absoluto desrespeito à dignidade de uma pessoa. (OIT, 2005, não pag.)

 

O trabalho escravo no campo brasileiro atualmente tem como sustentação o endividamento progressivo do trabalhador escravizado. Esta prática é semelhante àquela empregada nas fazendas de café brasileiras para onde foram levados os colonos europeus e também nos seringais na Amazônia. Segundo Neide Esterci, também lançaram mão do endividamento para a privação da liberdade dos trabalhadores no Brasil o sistema de morada nos canaviais do Nordeste. (ESTERCI, 1999). A coação física e psicológica à qual são submetidos os trabalhadores para que se sujeitem ao trabalho escravo tem como principal justificativa esta dívida. Assassinatos, espancamentos, humilhações sexuais e ameaças de morte são as práticas mais comuns para coagir os trabalhadores, como pode ser lido no trabalho de Figueira (2004). Outra característica desta escravidão é a sua duração. Quando acaba o trabalho, o trabalhador pode ser libertado, geralmente sem nenhum salário pelo trabalho realizado durante meses ou anos. Outras vezes esses trabalhadores são “vendidos” para outros exploradores.

O trabalho escravo contemporâneo no campo brasileiro é caracterizado por formas cruéis de intimidação e pela predominância da mão-de-obra de migrantes aliciados em outras regiões do país que não aquela onde é escravizado. Isso contribui para o processo de dissimulação do trabalhador e torna mais eficazes os mecanismos de coação. “É uma grande violência que se utiliza de várias modalidades de violência para se manter”. (NEIVA, 1994, p.24). Há predominância de mão-de-obra masculina, com poucos casos de mulheres. Martins (1999) destaca algumas diferenças entre a escravidão de negros nas Américas e a escravidão atual. Uma primeira diferença é o trato dado ao trabalhador. Segundo o autor, a escravidão atual é ainda mais cruel no trato com os trabalhadores escravizados, pois “adquiri-los” não implica a imobilização de capital, diferente do que ocorria na escravidão do século XIX, quando matar o escravo significava perda de capital. A segunda diferença destacada pelo autor é o caráter temporário, de “curta” duração. Outra diferença é o caráter racial presente na escravidão antiga e que na escravidão atual não existe. (MARTINS, 1999). Figueira (2004) diferencia a escravidão atual das anteriores pela sua curta duração, por ser ilegal, por não ser fruto de guerra ou seqüestro e não ser hereditária.

Em resumo, a escravidão contemporânea no campo brasileiro usa como principal instrumento de controle a dívida impagável e crescente, a coação física e psicológica, a apreensão de documentos e o isolamento geográfico. Os trabalhadores escravizados são aliciados em regiões distantes do local de trabalho. Não há caráter racial. A duração da escravidão do trabalhador é indeterminada, mas geralmente temporária. Os trabalhadores são submetidos a longas jornadas de trabalho e a condições subumanas de alimentação, moradia e salubridade. O trabalho escravo é empregado principalmente em tarefas pesadas como o desmatamento, limpeza de pastos (arrancar tocos), produção de carvão e corte de cana. Optamos por não utilizar nenhum tipo de adjetivação à palavra escravidão, pois acreditamos que são formas de atenuar o impacto desta realidade inadmissível. Coação física e psicológica, cerceamento da liberdade e não recebimento pelo trabalho realizado são elementos suficientes para a caracterização de trabalho escravo.

Em geral os trabalhadores são aliciados nos estados do Nordeste e escravizados no Norte e Centro-Oeste. Os “gatos”, como são chamados os aliciadores, são responsáveis pelo recrutamento, transporte e “manutenção” dos trabalhadores. Esses aliciadores iludem os trabalhadores com propostas de bons salários, oportunidade de conhecer novos lugares e de poder fazer uma poupança para ajudar suas famílias. O próprio gato cuida de toda a viagem. Todas as despesas de transporte, alimentação e hospedagem “correm por sua conta” e são computadas no saldo dos trabalhadores como dívida. Por ser uma prática ilegal, começando pelo próprio transporte inadequado, o gato se associa a diversos agentes para facilitar o seu trabalho criminoso. Segundo Corrêa (1999) são exemplos desses agentes os gerentes e proprietários de hospedarias e os transportadores.

Os dados sobre o trabalho escravo no campo brasileiro são impressionantes. Mais impressionantes ainda se tornam quando os analisamos sob a luz de trabalhados como de Figueira (2004), que retrata minuciosamente diversos casos no Pará e no Mato Grosso. Os dados são de trabalhadores pobres, explorados, submetidos à situações desumanas, com danos físicos e psicológicos irreversíveis. São brasileiros arrancados de suas famílias pela miséria, iludidos com a possibilidade de melhorarem suas vidas e de suas famílias através do trabalho! A CPT e o MTE são as principais fontes de informações sobre o trabalho escravo no campo brasileiro. Desde 1975 a CPT registra as denúncias de trabalhadores escravizados e em 1995 o MTE iniciou a fiscalização. As denúncias são feitas geralmente por trabalhadores que conseguem fugir das fazendas. Por ser uma atividade ilegal, os dados retratam parte da realidade, que é ainda pior. O medo dos trabalhadores que foram escravizados impede que o número de denúncias seja maior.

Frente às denúncias publicadas pela CPT, o MTE criou em 1995 o Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Este grupo é ligado ao Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GETRAF) e à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), ambos do MTE. O grupo móvel, com o auxílio da Polícia Federal, realiza inspeções em locais onde há denúncia de trabalho escravo. Quando há trabalho escravo os trabalhadores são libertados, são aplicadas multas e é efetuado o pagamento dos salários. Em seguida os trabalhadores são assistidos e encaminhados aos seus locais de origem. Segundo Vilela e Cunha (1999) o acompanhamento dos trabalhadores até seus locais de origem é um desafio e uma preocupação justificável, pois, “naquele cenário de violência, não é incomum encontrar um corpo jogado às margens da estrada ou cemitérios clandestinos no interior das fazendas”. (p.38). Segundo Figueira (2004), antes da criação do Grupo Móvel, em geral as denúncias não eram apuradas devido ao medo das equipes, falta de orçamento ou então corrupção dos fiscais. Ainda com relação aos dados do MTE, devemos considerar que são casos em que houve denúncia e foi possível realizar uma operação que conseguiu libertar trabalhadores. Em muitos casos as fiscalizações fracassam pelo vazamento de informações e astúcia dos “gatos” e jagunços, pois, “de posse da ordem de serviço, muitas vezes os fiscais e policiais são surpreendidos por proprietários que, sabendo da vistoria, tiveram tempo para preparar o ambiente”. (GUIMARÂES e BELLATO, 1999, p.72).

Entre 1986 e 2006 a CPT registrou denúncias em 368 municípios brasileiros que davam conta de cerca de 140 mil trabalhadores escravizados. Entre 1995 e 2006 o MTE fiscalizou denúncias em 195 municípios, onde libertou 21.222 trabalhadores escravizados. Como mostra o gráfico 9.3, a partir de 1996, ano seguinte ao início da fiscalização pelo MTE, o número de trabalhadores em denúncias à CPT diminuiu de forma significativa. Isso possivelmente pelo temor dos fazendeiros em cometer o crime e serem pegos e pelo trabalho de comparação dos dados da CPT com os dados de fiscalização do MTE. Contudo, algumas denúncias recebidas pela CPT ainda ficaram sem fiscalização e por isso os dados da CPT são sempre superiores aos do MTE, mesmo a partir de 1996. A comparação entre os dados da CPT e do MTE de 1996 até 2006 indica que o total de trabalhadores libertados pelo MTE representa 60% dos trabalhadores em denúncias à CPT. Embora nunca saibamos o número real de trabalhadores escravizados, os dados de denúncias são indicativos importantes da dimensão mínima desta prática no campo brasileiro.

 

GRÁFICO 9.3 – Trabalho escravo no campo brasileiro

 

O mapeamento das denúncias e dos trabalhadores liberados indica a ocorrência do crime em quase todas as unidades da federação, porém, como as demais violências, o leste do Pará concentra o maior número de casos. Os principais estados com a prática do trabalho escravo são Pará, Mato Grosso, Bahia, Maranhão, Tocantins, Goiás e Rondônia. As informações dos cadernos Conflitos no Campo da CPT desde 1986 e os registros do MTE indicam que o trabalho escravo é utilizado principalmente em: companhias siderúrgicas, carvoarias, mineradoras, madeireiras, usinas de álcool e açúcar, destilarias, empresas de colonização, garimpos, fazendas (para o desflorestamento e formação de pastagens), empresas de “reflorestamento”/celulose, agropecuárias, empresas relacionadas à produção de estanho, empresas de citros, olarias, cultura de café, produtoras de sementes de capim e seringais. Parte significativa dessas atividades é característica da fronteira agropecuária, o que explica a concentração territorial no Centro-Oeste e Norte do país.

 

PRANCHA 9.3

 

 

Os dados sobre a origem dos trabalhadores libertados pelo MTE indicam que 59% são naturais dos estados do Nordeste e 18,2% dos estados do Norte. Entre os estados, 30% são naturais do Maranhão, 9,3% do Pará, 9,6% da Bahia, 8% do Tocantins, 7,3% do Piauí, 6,3% de Minas Gerais e 5,2 de Goiás. O mapa 9.1 mostra detalhadamente a naturalidade dos trabalhadores e os municípios onde foram libertados (onde estavam escravizados). Apesar da naturalidade do trabalhador ser um forte indicativo do local onde ocorre o aliciamento, é necessário considerar a possibilidade desta ação ocorrer em municípios ou estados diferentes de onde os trabalhadores são naturais. O aliciamento pode ocorrer, por exemplo, em municípios para onde o trabalhador tenha migrado voluntariamente antes de ser aliciado. Desta forma, a informação do destino do trabalhador após sua libertação pode fornecer pistas mais concretas sobre o local de aliciamento. O mapa 9.2 representa o local de libertação e o destino do trabalhador após sua libertação e o mapa 9.3 representa a naturalidade e o destino após a libertação. Quanto ao destino, 40% dos trabalhadores se dirigem para municípios do Nordeste, 37% para municípios do Norte e 12,5 para municípios do Centro-Oeste. Entre os estados, 25,3% vão para municípios do Pará, 21,7% do Maranhão, 10,8% do Tocantins, 7,3% da Bahia, 7% do Mato Grosso e 5,1% para municípios de Goiás. Em suma, apesar da diferença da proporção, são os mesmos estados que concentram a naturalidade desses trabalhadores. A análise dos mapas e dados deixa evidente que parte significativa dos trabalhadores escravizados permanece nas regiões de ocorrência da prática criminosa, de forma que a probabilidade de que sejam novamente escravizados é grande.

 

MAPA 9.1

 

 

MAPA 9.2

 

 

MAPA 9.3

 

 

Para poder sintetizar a violência contra a pessoa no campo, elaboramos o índice de violência contra a pessoa. O índice considera o número de assassinatos, tentativas de assassinatos, ameaças de morte e a média entre o número de trabalhadores escravizados libertados pelo MTE e o número de trabalhadores escravizados em denúncias à CPT(35). Todos os dados são relativos ao período 1996-2006. O sudeste do Pará e o oeste da Bahia apresentam os maiores índices de violência contra a pessoa no campo. O que os caracteriza como regiões onde o Estado é absolutamente omisso. A situação verificada no sudeste do Pará provavelmente se intensificará com a consolidação da BR-163. O alto grau de violência que configura a questão agrária no Brasil é o caráter mais perverso da omissão do Estado na organização do campo brasileiro, onde latifundiários e fazendeiros são os senhores.



MAPA 9.4

 

 

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NOTAS
(34) O banco de dados da CPT é dinâmico e por isso os dados são constantemente atualizados. As informações publicadas nos cadernos são acrescidas e/ou corrigidas de acordo com documentos e informações que chegam ao setor de documentação mesmo após a publicação dos dados. Desta forma, os dados publicados neste trabalho podem diferir de outras publicações que tenham como base a CPT. Também os dados que utilizamos podem apresentar algumas diferenças porque, ao processá-los para o mapeamento, consideramos somente os dados referentes a municípios do IBGE, o que desconsiderou os poucos registros que são referenciados em localidades.
(35) Para estabelecer o índice foram somados, em cada município, o número de vítimas para todas as violências citadas e, em seguida, foi aplicada a seguinte fórmula: 100/número máximo verificado*total de cada município/100. Isso estabeleceu um índice que vai de 0 a 1 em que 1 indica o município com maior número de pessoas vítimas de violência no campo.