A LUTA PELA TERRA E SUA CONQUISTA
De acordo com as discussões realizadas na seção sobre questão agrária e campesinato, a luta pela terra e a conseqüente criação de assentamentos é uma forma de recriação do campesinato. As ocupações constituem um momento da luta pela terra. Como resposta às ações dos movimentos socioterritoriais, os governos criam assentamentos rurais que, em princípio, constituem a conquista da terra. Os assentamentos significam uma nova etapa da luta: o processo pela conquista da terra. Ainda é necessário conquistar condições de vida e produção na terra; resistir na terra e lutar por um outro tipo de desenvolvimento que permita o estabelecimento estável da agricultura camponesa.
No Brasil, a ocupação é a principal estratégia de luta pela terra realizada pelos movimentos socioterritoriais camponeses. Os dados do DATALUTA 2006 mostram que no país, entre 2000 e 2006, foram registradas ocupações de terra realizadas por 86 diferentes movimentos socioterritoriais. As áreas ocupadas são principalmente latifúndios, terras devolutas e imóveis rurais onde leis ambientais e trabalhistas tenham sido desrespeitadas. De modo geral, as propriedades ocupadas são aquelas que apresentam indicativos de descumprimento da função social da terra, definida no artigo 186(27) da Constituição Federal. Como o Estado não apresenta iniciativa para cumprir a determinação constitucional, os movimentos socioterritoriais agem para que isso aconteça. Ultimamente, além de lutar contra o latifúndio, os movimentos socioterritoriais camponeses iniciaram a luta contra a territorialização do agronegócio em suas formas mais intensas e por isso as ocupações têm ocorrido em áreas de produção de soja transgênica, cana-de-açúcar e plantações de eucalipto, por exemplo.
Em princípio a ocupação de áreas economicamente produtivas seria muito mais uma forma de protesto, visto que pela constituição (art. 185) elas não são suscetíveis à desapropriação para a reforma agrária. O artigo 186 estabelece que a propriedade deve cumprir sua função social, que compreende as dimensões ambiental, trabalhista e de bem estar do proprietário e dos trabalhadores. Na interpretação desses dois artigos, Pinto Jr. e Farias (2005) afirmam que não basta que a propriedade rural seja produtiva (art. 185) no sentido economicista para que não seja passível de desapropriação; ela deve ser produtiva respeitando simultaneamente os princípios do art. 186. A produtividade não pode ser alcançada sob conseqüência de desrespeito aos aspectos da função social, de forma que essas duas características são indissociáveis e “a função social é continente e conteúdo da produtividade” (p.48). Assim, caso a produção seja conseguida a partir do descumprimento das dimensões estabelecidas pelo artigo 186, o aspecto produtivo não isenta a propriedade de desapropriação para a reforma agrária. É por isso que o agronegócio, através de suas práticas, desrespeita a função social da terra. Por isso, as ocupações de propriedades cultivadas que não cumprem a função social são legítimas no sentido da luta, já que podem ser suscetíveis à desapropriação segundo a interpretação da lei apresentada acima.
A reforma agrária é necessidade historicamente defendida para a resolução dos problemas agrários no Brasil. Em nossa análise da luta pela terra tomamos o período de 1988 até 2006, quando ela foi intensificada. Nos sucessivos governos deste período, as ações de reforma agrária no Brasil têm sido baseadas principalmente nas políticas de criação de assentamentos rurais e de concessão de crédito aos camponeses. Partimos do princípio de que uma reforma agrária completa no Brasil deve, simultaneamente, reformar a estrutura fundiária do país, possibilitar o acesso dos camponeses à terra e fornecer-lhes condições básicas de vida e produção. Neste sentido, o II PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária) avançou ao apresentar uma compreensão ampliada de reforma agrária. Porém, como demonstraremos, a execução do plano tem apresentado uma reforma conservadora da estrutura fundiária através da criação de assentamentos rurais. Consideramos que no período analisado (1988-2006) houve uma reforma agrária conservadora, pois a forma como é conduzida a política de assentamentos conserva a estrutura das regiões de ocupação consolidada, isto é, centro-sul e Nordeste, de forma que o cumprimento dos princípios constitucionais é muito restrito. A partir desta premissa, nosso objetivo nesta seção é compreender o quanto reformadora é a política de assentamentos rurais que fundamenta esta reforma agrária conservadora.
A partir de 1995, primeiro mandado de Fernando Henrique Cardoso, houve um aumento significativo de famílias(28) em ocupações e de famílias assentadas (gráfico 8.1). As ocupações atingiram o seu máximo em 1999 (897 ocupações e 118.620 famílias em ocupações), ano em que Fernando Henrique Cardoso assumiu seu segundo mandato. Com o aumento constante do número de ocupações, no início do seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso publicou a Medida Provisória 2.027-38 de 4 de maio de 2000, que criminalizava a luta pela terra. A criminalização ficou mais evidente na MP 2.109-52 de 24 de maio de 2001, que substituiu a anterior(29). O texto dessas Medidas Provisórias prevê o impedimento, por dois anos, da vistoria de imóveis rurais onde tenham sido realizadas ocupações de terra e também exclui os trabalhadores que participam de ocupações de terra dos programas de reforma agrária. Com essas Medidas Provisórias o número de famílias em ocupações diminuiu drasticamente e o número de famílias assentadas acompanhou esta queda. A análise conjunta deste fato e da evolução das ocupações e assentamentos (gráfico 8.1) mostra que as famílias só são assentadas devido à pressão realizada pelas ocupações de terra. Com a eleição do presidente Lula em 2003 houve o crescimento das ocupações e conseqüentemente dos assentamentos. Isso possivelmente ocorreu pela minimização da aplicação da criminalização prevista na Medida Provisória e pela esperança que os movimentos socioterritoriais depositavam no Presidente Lula para a realização de uma reforma agrária mais ampla, o que não ocorreu. Os dados de famílias assentadas mostram que quantitativamente não há diferença entre os governos de FHC e de Lula, pois durante os oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso foram assentadas 457.668 famílias e no primeiro mandato de Lula foram assentadas 252.019. O total de famílias assentadas no primeiro mandato de Lula contempla 63% das 400 mil famílias previstas no II PNRA para o período. Os mapas da prancha 8.1 permitem comparar o número de famílias em ocupações de terra e de famílias assentadas nas microrregiões brasileiras nos três últimos períodos de governo.
TABELA 8.1 – A luta e a conquista da terra no Brasil
GRÁFICO 8.1 – A luta e a conquista da terra no Brasil
PRANCHA 8.1
Os mapas da prancha 8.2 apresentam os dados da luta pela terra e os da prancha 8.3 representam os dados da conquista da terra. As ocupações e as famílias que delas participam concentram-se no centro-sul e no leste do Nordeste. As famílias assentadas concentram-se na porção norte do País. As informações mais importantes desses mapas são o número de famílias em ocupações, que indica a gravidade dos problemas agrários, e a quantidade de famílias assentadas, que indica resposta do Estado para a solução do problema.
PRANCHA 8.2
PRANCHA 8.3
Desde 1988 foram realizadas mais de sete mil ocupações de terra, das quais participaram cerca de um milhão(30) de famílias cujos lares foram (ou ainda são), por vários anos, os barracos de lona dos acampamentos. Em resposta, os governos criaram desde então 7.230 assentamentos rurais, cuja área total de 57,3 milhões de hectares comporta cerca de 900 mil famílias. Poderíamos então concluir que restariam apenas cerca de 100 mil famílias para serem assentadas e a reforma agrária estaria concluída? A resposta positiva à qual conduz a matemática da reforma agrária conservadora é facilmente derrubada pela análise geográfica. O aspecto geográfico (aqui como referência ao localizacional) da política de assentamentos não constitui uma resposta local às demandas/denúncias dos movimentos socioterritoriais. A geografia da política de assentamentos rurais é um dos elementos que denunciam seu caráter conservador.
O mapa 8.1 representa de forma detalhada as famílias em ocupações e as famílias assentadas de 1988 até 2006. A oposição norte-sul evidencia a ineficácia regional da política de assentamentos rurais, indicando que os problemas agrários locais não são resolvidos, o que mantém o conflito e anula o desenvolvimento. O aspecto mais elementar da concentração das ocupações no centro-sul e em regiões do Nordeste é que essas são as regiões em que se concentra a população brasileira (ver seção sobre "população"). Aí também se concentram os milhões de expropriados e camponeses em vias de desintegração devido à modernização da agricultura e industrialização do país, não planejadas de forma adequada para garantir a distribuição da riqueza. Além da concentração populacional, as regiões de ocupação consolidada, onde se concentram as ocupações de terra, são caracterizadas pela melhor infra-estrutura para produção, maior mercado consumidor e acesso a serviços básicos como educação, saúde, eletricidade e saneamento. Essas são as áreas onde a reforma tem sentido, pois desconcentra as terras e otimiza a sua utilização. É nessas regiões que a agricultura camponesa pode conseguir mais facilmente sucesso de forma autônoma, já que a intervenção do Estado é insignificante frente ao verificado em países desenvolvidos. Tendo isso em mente, as ocupações na metade sul do país são as que mais contribuem para a realização da reforma agrária, pois é nessas regiões que a estrutura concentrada já estabelecida deve ser reformada.
MAPA 8.1
A partir deste primeiro indício da ineficácia regional da política de assentamentos, analisamos a potencialidade reformadora dos diversos tipos de assentamentos rurais. A origem da terra para a criação dos assentamentos é o principal elemento que consideraremos na análise. Os assentamentos podem ser criados a partir de a) terras desapropriadas, cujos proprietários são indenizados; b) reconhecimento de posses e c) projetos de conservação ambiental, que reconhecem unidades de conservação de uso sustentável como assentamentos. Em todos os casos as famílias assentadas são consideradas beneficiárias da “reforma agrária” e têm acesso aos programas de crédito e recursos para instalação previstos no II PNRA. A tabela 8.2 mostra os 18 tipos de assentamentos e os dados concernentes.
TABELA 8.2 – Tipos de assentamentos rurais 1988-2006
Além da origem da terra, os assentamentos possuem outras características que consideramos na análise, para as quais nos baseamos em Rocha (2008). Classificamos os assentamentos em não reformadores e reformadores. O grupo dos assentamentos não reformadores compreende os seguintes tipos (tabela 8.2), cujas características são: AQ e PFP: reconhecimento de terras e beneficiários(31); FLONA, PAE, PAF, PDS, RDS, RESEX: caráter ambiental, reconhecimento de terras e beneficiários; PAC, PC e PIC: projetos de colonização de novas áreas; PDA: colonização e titulação; PAR: titulação de posses; PRB: beneficiários e compensação de passivo social. O grupo dos assentamentos reformadores compreende os tipos PA, PAM, PCA e PE, cujas terras de origem são em grande parte desapropriadas.
De modo geral, os assentamentos não reformadores são os reconhecimentos de posse, assentamentos criados em terras públicas, unidades de conservação sustentáveis e outros projetos de caráter ambiental. Esses assentamentos se confundem com as políticas ambiental e de ocupação do território. A criação de unidades de conservação de uso sustentável, reconhecidas como assentamentos rurais, não desconcentra a terra. Essas áreas não fazem parte da estrutura fundiária e geralmente são criadas em terras públicas, o que não implica em desapropriação de terras. A regularização de posses também não implica em desapropriação de terras. Desta forma, consideramos que a o reconhecimento de posses e a criação de assentamentos em terras públicas são formas de alterar a estrutura fundiária com a adição de novas áreas e de novos detentores sem que seja necessário reformar as áreas que previamente compunham a estrutura fundiária, ou seja, dividir as terras. No caso dos assentamentos não reformadores o campesinato se territorializa sem que haja a desterritorialização do latifúndio. Para os assentamentos reformadores(32)as terras são arrecadadas geralmente a partir de desapropriação, o que representa o mais alto grau de reforma da estrutura fundiária possível na legislação brasileira atual. Através da criação desses tipos de assentamentos é cumprido o artigo 186 da Constituição e a estrutura fundiária é de fato desconcentrada. Com os assentamentos reformadores o campesinato se territorializa a partir da desterritorialização do latifúndio.
Entre os assentamentos criados no período 1979-2006 os reformadores são 92,7% e comportam 85,1% das famílias em 53,2% da área total. A tabela 8.3 mostra que no primeiro mandato de FHC a ênfase foi na criação de assentamentos reformadores. Já no segundo mandato, paralelamente à diminuição pela metade do número total de assentamentos criados e de famílias assentadas, houve aumento da proporção dos assentamentos não reformadores, em especial dos de caráter ambiental. No primeiro mandato de Lula os dados dos assentamentos reformadores são muito próximos daqueles verificados no segundo mandato de FHC. A particularidade do primeiro mandato de Lula é a intensificação da criação de assentamentos não reformadores, em especial os de caráter ambiental. Esses assentamentos não reformadores correspondem, no primeiro mandato de Lula, a 21% dos assentamentos criados, 43% das famílias assentadas e 80% da área total.
TABELA 8.3 – Assentamentos não reformadores e reformadores por período de governo
Os mapas 8.2 e 8.3 evidenciam a importância dos assentamentos não reformadores na Amazônia. No mapa 8.2 está representada a área total dos imóveis rurais em 2003 e a área dos assentamentos rurais (18 tipos) criados desde 1988. O mapa mostra que na Amazônia oriental a área dos assentamentos é maior do que a área total dos imóveis rurais. Isso ocorre por que a maior parte dos assentamentos de caráter ambiental não conta na estrutura fundiária por ser referente às unidades de conservação. A confirmação está na comparação dos mapas 8.2 e 8.3, já que no mapa 8.3 é representada apenas a área dos assentamentos reformadores e por isso a área dos assentamentos não ultrapassa a área total dos imóveis, a não ser por uma exceção no Mato Grosso e outra no Pará. Esses dois mapas, juntamente com o mapa 8.4, ajudam a sustentar a afirmação de que a reforma agrária conservadora tem se sustentado principalmente na Amazônia com a assimilação de projetos ambientais e de ocupação da região.
Os mapas 8.2 e 8.3 também contribuem para esclarecer a participação dos assentamentos rurais na ocupação da Amazônia. Apesar dos assentamentos fazerem parte da política de ocupação, a sua área em relação à área total apropriada é pequena, de forma que a maior parte da região é ocupada a partir da apropriação das terras por particulares. O mapa 8.3 mostra a efetiva participação dos assentamentos na ocupação da Amazônia, pois representa apenas os assentamentos reformadores relação à área total dos imóveis. Tomamos apenas os assentamentos reformadores por que esses são os que apresentam impacto mais importante, visto que grande parte dos demais são unidades de conservação sustentáveis e por isso seu impacto é reduzido. Isso indica que, embora a Amazônia seja o principal escape para o desenvolvimento da política de assentamentos rurais, não podemos associar o processo ocupação da região exclusivamente ou majoritariamente aos assentamentos. A maior parte da ocupação é promovida pela ocupação particular e não pelos assentamentos.
MAPA 8.2
MAPA 8.3
Se considerarmos somente os assentamentos reformadores entre 1988 e 2006, contabilizamos 6.704 (92,7%)(33)assentamentos com 29.625.441 (51,7%) ha, nos quais foram assentadas 689.345 (85,4%) famílias. Não sabemos quais desses assentamentos foram criados por iniciativa do governo ou pela demanda local dos movimentos socioterritoriais camponeses, porém as ocupações de terra podem fornecer pistas. Partindo deste princípio, podemos então considerar apenas os assentamentos reformadores criados entre 1988 e 2006 nos municípios em que houve ocupação de terra no mesmo período. Segundo este critério são 4.425 (61,2%)(33) assentamentos, 412.140 (51,1) famílias assentadas e 15.322.995 (26,7%) hectares. O mapa 8.5 representa as famílias assentadas segundo esta classificação. O diferencial territorial do mapa mostra que há uma ordem regional da classificação que propomos. Os assentamentos reformadores criados em municípios onde ocorreram ocupações de terra são predominantes nas regiões de ocupação consolidada. Os assentamentos reformadores criados em municípios sem ocorrência de ocupações de terra configuram uma faixa de transição arqueada que vai do oeste do Mato Grosso até o Maranhão. O terceiro grupo, dos assentamentos não reformadores, concentra-se principalmente na metade noroeste da Amazônia Legal. O mapeamento confirma a hierarquia do grau de reforma dos assentamentos, já que os assentamentos reformadores em municípios sem ocorrência de ocupação de terra estão localizados principalmente em regiões de ocupação recente, que configuraram a fronteira agropecuária nas décadas de 1980 e 1990. O mapa evidencia o conservadorismo da reforma agrária.
MAPA 8.5
Partindo do princípio de que as ações dos movimentos socioterritoriais são a medida de indicação dos problemas fundiários das localidades (municípios) e o assentamento das famílias nessas mesmas localidades indica a tentativa de solução dos problemas pelo Estado, propomos o índice de assentamento. A elaboração do índice consiste em a) selecionar os municípios em que tenha havido ocupação de terra no período considerado; b) subtrair o número de famílias em ocupações (FO) do número de famílias assentadas em assentamentos reformadores (FAR); c) dividir 100 pelo maior valor verificado entre os municípios na operação FO - FAR; d) multiplicar o resultado da etapa c pelo caso FO - FAR verificado em cada município; e) dividir o resultado por 100. Desta forma, temos um índice sintético que varia de -1 a 1. Os valores positivos, com máximo em 1, indicam o atendimento às demandas locais por terra; já os valores negativos, com mínimo em -1, indicam que a demanda não é atendida e que a luta pela terra é mais intensa e mais longa. Este índice é capaz de indicar a solução ou não dos problemas fundiários locais pela política de assentamentos rurais e pode indicar de forma mais clara a real reforma, já que o local é tomado como referência e os dados das políticas não são diluídos em escala nacional.
O mapa 8.6 representa o índice de assentamento. Os valores positivos estão principalmente na metade noroeste do país e os índices negativos se concentram na metade sudeste. No mapa 8.7 vemos que os municípios com maiores índices são os que concentram a maior parte das famílias assentadas, o que já era previsto, pois é nesses municípios que os governos têm concentrado a criação de assentamentos para da uma resposta quantitaiva à sociedade. Os baixos índices nas regiões onde predominam as ocupações de terra confiram a não reforma local.
MAPA 8.6
MAPA 8.7
Quando tratamos das posses e grilos vimos que em 1998 as terras exploráveis não exploradas no país totalizavam 75,4 milhões de hectares, dos quais 45% estavam na região Norte. Desta forma, para fins de reforma agrária, se desconsiderássemos as terras exploráveis não exploradas da região Norte, teríamos ainda 40 milhões de hectares reformáveis (10 milhões de ha a mais do que toda a área de assentamentos reformadores entre 1988 e 2006). É necessário lembrar que esta estimativa foi declarada pelos detentores dos imóveis, e por isso a superfície real reformável pode ser superior. Além disso, é necessário verificar as terras que não cumprem a função social, o que aumentaria ainda mais a área reformável. O Censo Agropecuário 2006 do IBGE poderia indicar esta superfície, porém na pesquisa o instituto não contabilizou separadamente as áreas de lavoura em “descanso” e as áreas exploráveis não utilizadas. Para agravar o problema, a metodologia do recenseamento contabilizou essas áreas como “áreas de lavouras temporárias”, o que superestima a área em produção e oculta as áreas exploráveis não exploradas. Esta foi uma opção negativa do Instituto na contribuição para a análise da estrutura agrária do país. Em resumo, 40 milhões de hectares é sem dúvida um valor aquém do que é realmente reformável no Brasil (exceto a região Norte), de forma que não faltam terras para a reforma agrária, mas sim vontade política para realizá-la.
Para não alterar a estrutura fundiária das regiões de ocupação consolidada e desenvolver a política de assentamentos com ainda menos recursos, a região da fronteira agropecuária, principalmente a frente pioneira, tem sido utilizada para assentar as famílias em assentamentos não reformadores. Um dos argumentos para não reformar outras regiões do país é o preço das terras. A aquisição de terras pode ser menos onerosa na região de fronteira, entretanto, se o assentamento das famílias nessas regiões fosse realizado de forma adequada para garantir boa qualidade de vida às famílias, provavelmente exigiria ainda mais recursos do que os necessários para obter terras em outras regiões do país. Isso por que, como sabemos, a frente pioneira é caracterizada pela baixa densidade de infra-estrutura, precariedade de serviços básicos e mercado consumidor rarefeito. Nesta região os assentamentos são precariamente instalados, o que faz com que a estratégia de gastar menos com a reforma agrária na fronteira agropecuária funcione, já que o interesse é o número de famílias assentadas e não a qualidade de vida dessas famílias. A expropriação da terra ao invés da desapropriação poderia ser uma alternativa para possibilitar uma reforma mais ampla, porém isso não é previsto na lei, salvo em áreas onde ocorra trabalho escravo e cultivo de drogas ilegais. Assim, a não reforma de áreas de ocupação consolidada é uma decisão política para conservar a elite agrária, principalmente no centro-sul e Nordeste, e reservar as terras para a territorialização do agronegócio. Isso possibilita a esta elite ainda mais riqueza e poder, a exemplo do que vem ocorrendo em São Paulo com a cana-de-açúcar. Esta opção política é sem dúvida a principal causa da reforma agrária conservadora.
O caráter mais conservador da reforma agrária brasileira é o programa de crédito chamado de reforma agrária de mercado, iniciado no governo FHC com o Banco da Terra e hoje transformado no programa Cédula da Terra. Este programa, que segue as indicações do Banco Mundial para a “reforma agrária”, tem como principal instrumento a concessão de crédito para a compra de pequenas propriedades. Desta forma, o Estado se torna ainda mais distante das ações, que neste caso são ditadas pelo mercado de terras. Destacamos que não trabalhamos com os dados deste programa de crédito nas análises realizadas neste capítulo.
O problema da reforma agrária conservadora está na não reforma das regiões de ocupação consolidada. A intervenção no ordenamento da fronteira agropecuária com a criação de assentamentos, reconhecimento de pequenas posses e criação de áreas de manejo sustentável exploradas por camponeses é sem dúvidas positivo. Essas políticas permitem a territorialização do campesinato, garantem acesso aos recursos de crédito e fazem com que os camponeses “invisíveis” até então sejam reconhecidos e melhorem sua condição de vida. As unidades de manejo sustentável reconhecidas como assentamentos constituem um passo importante no reconhecimento dos direitos dos povos da floresta, especialmente representativos no Norte do país. O fato é que a criação de assentamentos não reformadores não pode suplantar a reforma nas regiões de ocupação consolidada. O problema não está na criação dos assentamentos não reformadores, mas sim como eles são utilizados como estratégia para não reformar as outras regiões do país. Como mostram os dados, não houve progresso na criação de assentamentos reformadores entre 1999 e 2006, pelo contrário, houve o crescimento da criação de assentamentos não reformadores, o que contribuiu para a conservação de valores muito elevados no índice de Gini da estrutura fundiária. As ações na fronteira agropecuária certamente fazem parte da reforma agrária, porém não bastam; elas devem ser conduzidas paralelamente à reforma das demais regiões, que deve ser mais importante.
Devido às particularidades da região da fronteira agropecuária, os projetos de caráter ambiental devem ser particularmente seguidos de perto pelo Estado para que a sustentabilidade não seja colocada em cheque pela miséria, contra a qual não há argumentos. A instituição de programas de renda mínima aos assentados - e aos camponeses de forma geral - é indispensável e tem tripla significação: a) contribui para resolução do problema agrário; b) contempla a problemática ambiental e c) é uma oportunidade ímpar para deter o intenso êxodo rural ainda em marcha no país (como visto no capítulo sobre as "características socioeconômicas"). Outro fator que torna a atuação do Estado indispensável junto a esses assentamentos é a violência contra camponeses e trabalhadores rurais na fronteira agropecuária, tema sobre o qual nos dedicamos no próximo capítulo. No enfrentamento entre os territórios do campesinato e do latifúndio e agronegócio é indispensável que o Estado ofereça suporte ao primeiro em detrimento do segundo.
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NOTAS
(27) Art. 186 da CF. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I) aproveitamento racional e adequado; II) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
(28) Para os dados de famílias em ocupações ou famílias assentadas, calcula-se a média de cinco pessoas por família. Os dados de famílias assentadas são referentes ao número famílias que o assentamento comporta em sua capacidade máxima. Esses dados não dizem respeito, por exemplo, aos casos em que as famílias desistem de seus lotes e outras famílias são assentadas. Este processo não é acompanhado. A quantidade de famílias nos assentamentos pode ser inferior, em projetos de assentamentos não totalmente ocupados, o que pode ocorrer no início da implantação, ou superior, no caso de outras famílias que passam a viver nos lotes com as famílias beneficiárias. No caso das famílias em ocupações de terra, a mesma família pode participar de diversas ocupações na sua trajetória de luta, que pode durar anos.
(29) Atualmente essas Medidas Provisórias estão em tramitação sob a forma da MP 2.183-56 de 24 de agosto de 2001.
(30) Este número é provavelmente superior, visto que não há informações sobre o número de famílias para 867 ocupações de terra.
(31) Por beneficiários, designamos as formas de assentamentos em que o acesso à terra não foi possibilitado pelo Estado, que atuou principalmente com o reconhecimento do direito de uso ou de propriedade. Os beneficiários são contabilizados como assentados pelo fato de terem direito a recursos financeiros de estabelecimento na terra e créditos direcionados à agricultura familiar.
(32) Alguns tipos de assentamentos reformadores também podem ser criados a partir de terras públicas, o que ocorre principalmente na fronteira agropecuária. Por não termos informações detalhadas a este respeito, não iremos particularizar esses assentamentos dentro do grupo reformadores. Caso houvesse possibilidade de particularizarmos, a conseqüência seria diminuir ainda mais o número de assentamentos reformadores, já que consideramos não reformadores os assentamentos criados a partir de terras públicas.
(33) Em relação ao total dos 18 tipos de assentamento (ver tabela 8.2)